domingo, março 05, 2006

Caminhos divergentes?


Do meu ponto de vista, os liberais vão por maus caminhos ao escolherem uma destas vias (ou ambas): ocuparem-se demasiado da pequena política e manifestarem demasiado interesse no Estado. Em ambas as coisas, a pequena política e o Estado, os liberais serão irrelevantes e dificilmente serão influentes sem abdicarem do liberalismo.

O recente ensaio de formulação de uma "estratégia" (para implementar que "programa"?) através da invenção de uma "direita liberal" é um modo airoso de disfarçar essa apetência pela pequena política e pelo Estado. Se dissessem que a "estratégia" é influenciar o PSD e o CDS, captando-os para uma agenda concreta, isso seria mais claro e teria a grande vantagem de não enredar o liberalismo numa das heranças mais irracionais e espúrias da politica francesa – a dicotomia esquerda/direita. Que essa dicotomia engole o liberalismo e secundariza aquilo que é realmente importante para os liberais (liberalismo vs. iliberalismo, ou seja, individualismo jurídico e económico vs. todas as formas de colectivismo) parece-me por demais evidente.

Por outro lado, não vejo por que razão uma estratégia de influência sobre o sistema partidário deva excluir o PS e incluir o PSD, tanto mais que, no equilíbrio de forças das últimas décadas em Portugal, o apoio do PS tem sido imprescindível para todas as grandes reformas do Estado – sendo estranho que uma estratégia liberal descure um dos dois grandes partidos do sistema quando esses partidos são ideologicamente iguais, se nos abstrairmos da fantasia de que no nosso país a social-democracia do PSD é em alguma coisa diferente do socialismo democrático do PS (em qualquer país "normal" social-democracia e socialismo democrático são duas formas de dizer a mesma coisa).

Por razões que já expliquei noutra ocasião, uma estratégia de "ruptura" por dentro do actual sistema partidário dificilmente pode passar pelo PS e pelo PSD (e nem mesmo nessa outra estratégia que propus me parece evidente que o termo "direita" tenha qualquer papel a desempenhar).

Pressentindo-se que existe uma passagem da área do estudo e do debate para a intervenção política, não se percebe que "agenda" concreta existe. E isso pode levar o combate político dos liberais a uma mera luta de palavras e de rótulos, que se esboroará ao primeiro contacto com o poder. Quer dizer: reclamar a abertura de um espaço "de direita" para o liberalismo ter uma via aberta na vida política significa exactamente o quê? Que os liberais vão fazer o jogo da "direita" (o que quer que isso seja) para mais tarde – num futuro incerto – terem uma oportunidade não sabe bem de quê? Significa que os liberais vão ter de passar a incluir-se na "direita" (rendendo-se à visão do mundo dos socialistas, que sempre os arrumaram assim entre nós)? Ou que devem alinhar com determinadas forças partidárias (a eleitoralmente mais relevante das quais, o PSD, que até sempre recusou qualquer conotação "direitista")?

Mas, independentemente destes equívocos estratégicos, um problema para mim estrutural da causa liberal em Portugal é o modo de estar e a atitude dos próprios liberais. Isto parece-me estar ligado a um fascínio contraproducente pela luta política e pelo poder e, o que é mais embaraçoso de abordar, aos compromissos sociais e económicos de muitos liberais... com o Estado Social(ista).

De facto, seria muito mais saudável para a presença pública do liberalismo que menos liberais estivessem dependentes de dinheiros públicos (em salários, bolsas e subsídios), já que me parece que a realidade contrária funciona como um poderoso (e silencioso) incentivo à entrada nas tricas próprias do sistema político e na falsa lógica de “ideias” e “valores” da dicotomia esquerda/direita. Não só por os liberais se sentarem assim à “mesa do orçamento” (limitando a sua independência face a um Estado que querem reformar), mas também porque assim são enredados nas sociabilidades da dependência pública (que aprisionam).

Na presença pública de algumas vozes liberais que conseguiram aceder aos media está a tornar-se patente a preferência pelo caminho da “direita liberal”. Facilita-se deste modo o funcionamento habitual dos critérios jornalísticos de arrumação das opiniões em “esquerda” e “direita” – e a aceitação pelos media de liberais para desempenharem esse jogo. Mas é sintomático que seja a ideia da “direita” a passar e o liberalismo a continuar incompreendido.

Publicado em L&LP, AP e CL