sábado, março 15, 2008

«Escola Austríaca»: individualismo e subjectivismo metodológicos nas ciências sociais

Carl Menger (1840-1921)

“Escola Austríaca” é a designação geralmente dada a um conjunto de autores que se consideraram discípulos intelectuais de Carl Menger (1840-1921): Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914), Friedrich von Wieser (1851-1926), Ludwig von Mises (1881-1973), Leo Schoenfeld-Illy (1888-1952), Friedrich von Hayek (1899-1992), Gottfried von Harbeler (1901-1995), Oskar Morgenstern (1902-1977), Fritz Machlup (1902-1983), Ludwig Lachmann (1906-1990), Murray Rothbard (1926-1995) e Israel Kirzner (n. 1930).

O adjectivo “austríaco” desta linha de autores deve-se à sua origem geográfica (a Áustria do tempo de Menger) e é uma mera convenção, dado que os dois principais autores da “Escola” depois de Menger, Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, desenvolveram e deram a conhecer as suas obras fundamentais fora da Áustria e em língua inglesa. Essa natureza convencional do epíteto “austríaco” da Escola torna-se clara quando se considera um autor como Joseph A. Schumpeter (1883-1950), austríaco de nascimento, mas, por razões metodológicas, claramente estranho a esta linha de autores. Foram os opositores alemães de Menger que o denominaram desdenhosamente a ele e aos seus discípulos (então, Böhm-Bawerk e Wieser) de “austríacos”. Os autores que, desde então, se reclamaram de Menger aceitaram este epíteto que os individualizou na história do pensamento económico. Foi, aliás, com essa transposição da “Escola Austríaca” para o mundo anglo-saxónico, protagonizada por Mises e Hayek, que aquela entrou nos grandes debates teóricos das primeiras décadas do século XX, que a tornaram conhecida nos meios académicos e a levaram mesmo a dar importantes contributos para o mainstream do pensamento económico.

Apesar de, em geral, partirem todos da economia, estes autores interessaram-se por questões metodológicas que são comuns a outras áreas do saber dentro das ciências sociais. De facto, a obra fundadora desta linha de pensadores sociais e economistas, Grundsätze der Volkswirthschaftslehre [Principles of Economics] (1871), de Carl Menger, despoletou a famosa "Methodenstreit" (a disputa sobre o método) com o principal representante da denominada “escola histórica alemã de economistas”, Gustav von Schmoller. Embora, na Methodenstreit, a questão se tivesse colocado em torno da metodologia da ciência económica, a relação desta com a ciência histórica foi talvez o verdadeiro centro da disputa e permitiu a abordagem de problemas relativos às ciências sociais em geral: a formação de conceitos, a natureza destes conceitos, a sua articulação em teorias (ou “leis”, como então se dizia) do comportamento humano, a relação destas com os dados “históricos” ou estatísticos recolhidos nas investigações empíricas.

Desde este início, os autores da “Escola Austríaca” viram-se sempre obrigados, quer a reiterar os princípios metodológicos defendidos por Menger nas décadas de 70 e 80 do século XIX quer a demonstrarem os seus necessários desenvolvimentos perante outras correntes do pensamento económico e social. Isto explica que a “Escola Austríaca” tenha sempre mantido viva a centralidade das questões metodológicas nas obras dos seus principais autores.

Carl Menger publicou em 1883 o seu Untersuchungen über die Methode der Socialwissenschaften und der politischen Ökonomie insbesondere, que marcaria todos os autores da “Escola”, mas cuja reflexão metodológica seria explicitamente continuada apenas por Mises e Hayek, já que os seus antecessores directos, Böhm-Bawerk e Wieser, não deixaram obras específicas sobre essa temática. Mises deixou uma extensa introdução metodológica no seu tratado Human Action (1949) e obras como Epistemological Problems of Economics (1933 e 1976) e The Ultimate Foundation of Economic Science: An Essay on Method (1962). Por seu lado, Hayek tem vários estudos consagrados a questões metodológicas nas suas obras Individualism and Economic Order (1948), The Counter-Revolution of Science (1952), Studies on Philosophy, Politics and Economics (1967), New Studies on Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas (1975) e no primeiro volume da sua obra Law, Legislation and Liberty (1973). Outros autores posteriores, como Lachmann, Rothbard e Kirzner, têm contributos metodológicos significativos a partir das obras de Mises e Hayek.

Embora as origens da “Escola Austríaca” sejam muitas vezes relacionadas – aliás, correctamente – com a emergência das chamadas teorias “marginalistas” (teoria da utilidade marginal), que, na teoria económica, contestaram as concepções então vigentes sobre teoria do valor dos bens económicos, o seu contributo foi bem mais vasto. O individualismo e o subjectivismo metodológicos foram as características marcantes da “Escola Austríaca” e derivaram da importância concedida pelos seus autores à reflexão teórica em torno dos conceitos analíticos utilizados nas ciências sociais.

Contra a “escola histórica” alemã, os “austríacos” afirmaram a importância fulcral de estudar os dados coligidos sobre o passado das sociedades com uma utensilagem teórica prévia, negando que as “teorias” (ou “leis” sobre o comportamento humano) pudessem ser extraídas desses dados. Esse pressuposto explica que os “austríacos” fossem particularmente resistentes às pretensões positivistas de importar para as ciências sociais os métodos das chamadas ciências naturais ou exactas ou de negar a relevância da reflexão teórica pura. Do mesmo modo, a insistência dos “austríacos” em fundar toda a análise social sobre o estudo das escolhas dos indivíduos em interacção com o meio, levou-os muito cedo a contestar métodos de análise baseados em conceitos holistas ou colectivistas como os propostos nomeadamente pelo marxismo. Enfim, os pressupostos teóricos dos “austríacos” levaram-nos igualmente a olhar com cepticismo para a aplicação de métodos matemáticos e estatísticos às ciências sociais quando aí se pretendia ver um acréscimo do seu rigor.

Como escreveu Schumpeter, Menger «took up the battle to establish the rightful place of theoretical analysis in social matters» (Ten Great Economists, Oxford University Press, 1951, p. 88) e isso poderia ser repetido em relação aos seus dois principais discípulos, Mises e Hayek. Estes dois autores desenvolveram críticas explícitas às correntes positivistas e historicistas e reelaboraram as ideias de Menger, para lhes fazer frente.

Mises, em particular, desenvolveu um campo de estudos que denominou praxiologia (ou ciência da acção humana), no qual incluiu a economia, e que pretendia ser um sistema teórico explicativo de toda a acção humana no tempo e no espaço. Nesse esforço, voltou a considerar as relações da teoria social e económica individualista e subjectivista com a história e com o tratamento estatístico da informação coligida sobre as sociedades. Do seu esforço, resultou uma proposta metodológica ambiciosa que não enjeitou a reflexão epistemológica, antes a considerando fundamental para refutar aquilo que entendia serem erros comuns na investigação em ciências sociais. Assim, na praxiologia misesiana, o apriorismo teórico na metodologia das ciências sociais, intuído e esboçado por Menger, foi reafirmado elaborada e sistematicamente.

Hayek, por seu lado, sem exactamente voltar à fundamentação psicológica das escolhas individuais de Böhm-Bawerk e Wieser (embora a psicologia tenha sido um dos seus interesses mais persistentes, como o demonstra a sua obra The Sensory Order: A Study on Theoretical Psychology, 1952), considerou o problema dos limites e da subjectividade do conhecimento no comportamento dos indivíduos, relacionando-o com a dificuldade de planear a vida em sociedade. Daí o aprofundamento que deu a outra das “intuições” de Menger, a importância para as ciências sociais do estudo das estruturas jurídicas das sociedades a partir dos contributos teóricos daquilo a que se chamava a “escola histórica dos juristas” (Burke e Savigny nomeadamente, que haviam valorizado as instituições e as normas sociais não planeadas). O desinteresse da "escola histórica" alemã pela "escola histórica dos juristas" foi notada por Menger e realçada por Hayek como demonstrativa da existência de duas atitudes opostas perante a história: a "historicista" da "escola histórica" alemã que, influenciada pelo positivismo e pelo hegelianismo, tende para um determinismo histórico, e a da "escola histórica dos juristas" e da "Escola Austríaca", que vêem no passado um amplo campo de pesquisa que tem de ser orientada por uma reflexão teórica "fora da história". Este interesse levou-o a debruçar-se sobre a criação “espontânea” de ordem na sociedade (i.e., sem a intervenção de um planeamento deliberado e de esquemas coercivos) e para a importância das relações de mercado e do sistema de preços no funcionamento das relações entre indivíduos e grupos humanos. Hayek reorientou, assim, a "Escola Austríaca" para uma predisposição da investigação sobre a sociedade como uma "economia do conhecimento" (um dos seus estudos mais profícuos sobre esta matéria chamou-se precisamente The Use of Knowledge in Society).

BIBLIOGRAFIA
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