domingo, agosto 26, 2012

(II) Os Descobrimentos e o Renascimento

Com a abertura de Portugal ao mundo, os pensadores nacionais abriram-se ao experimentalismo e às novas correntes. As viagens marítimas dos Portugueses a partir do século XV, com a descoberta de outras terras, povos e culturas, abriu novos horizontes ao pensamento europeu e reflectiu-se na reflexão dos autores de Quinhentos e Seiscentos. O papel da observação, da experiência e da utilização da matemática foi considerado e valorizado de um modo que introduziu descontinuidades em relação ao período histórico anterior. Com estas mudanças muito ligadas às actividades marítimas de então, a reflexão filosófica abandonava a era medieval e abraçava a era moderna. À filosofia formal foi momentaneamente preferido um estudo empírico da realidade, recorrendo alguns dos autores deste período à matemática para afinarem o rigor das suas observações e deduções. Esta transformação, que antecipava não só tendências futuras como também uma das características do período renascentista, coincidiu com o ímpeto descobridor do século XV e início do século XVI, mas foi momentâneo.

«A experiência, mãe de todas as coisas»

Duarte Pacheco Pereira, nascido em meados do século XV, revela o interesse renovado pelo estudo da natureza e da geografia, consciente já da necessidade de corrigir e superar os autores antigos. Na sua obra Esmeraldo de situ orbis (1506), reflectindo sobre a substituição de ideias antigas por outras adquiridas nas viagens oceânicas, realça a importância da experiência, «mãe de todas as coisas», para o conhecimento rigoroso, que, assim, não poderia ser apenas uma construção meramente teórica ou intelectual, mas teria de ser também empírica.

Em Pedro Nunes (1502-1578), professor de filosofia natural na universidade de Coimbra, aparece já uma atitude crítica da «maioria dos filósofos do nosso tempo, que consideram de somenos o conhecimento da matemática». Partindo também da experiência náutica adquirida pelos Portugueses, Pedro Nunes chamou atenção para a importância que teve a matemática aplicada na construção de um saber astronómico e geográfico rigoroso nas viagens dos nossos navegadores. As suas obras Tratado da Esfera (1537) e Livro de álgebra e geometria (1567) denotam uma abertura precoce à matematização do saber. D. João de Castro (1500-1548) procurou igualmente, nos dados que coligiu relativos à filosofia natural e à náutica, um rigor matemático e uma ciência de base empírica. Nestes autores ficou esboçada uma promessa pioneira e consistente de abertura à ciência experimental e à filosofia moderna que então se iniciavam na Europa, mas que acabaram por não florescer em Portugal.

O método científico em Francisco Sanches

Francisco Sanches (1550-1622), cristão novo que iniciou os seus estudos em Braga, veio a desenvolver a sua actividade ligada à medicina e à filosofia em França (onde contactou com as mais avançadas correntes do Renascimento e da Reforma religiosa). Na sua obra, reunida nos seus Tratados filosóficos, Sanches revela-se crítico da filosofia escolástica e das concepções aristotélicas que a suportavam. Influenciado pela prática da medicina, defende uma concepção empirista da ciência, pondo ênfase na necessidade de construir um saber autónomo da metafísica e da religião e orientado para uma realidade entendida como objectiva e regida por leis que devem ser descobertas sobretudo através da experiência.

Embora, para Francisco Sanches, o objecto da ciência fosse o conhecimento das causas naturais dos fenómenos observados, o filósofo recusava que a essas «causas segundas» se devesse limitar a nossa concepção da realidade, que deveria estar consciente da existência de Deus e de «causas primeiras». No entanto, Sanches defendeu que o conhecimento das causas naturais não só era trabalhoso como dificilmente poderia suportar as “causas primeiras” sem um esforçado labor dedutivo.

A filosofia judaica

Entre os judeus portugueses, a filosofia  floresceu pouco antes da conversão forçada de 1496, que pôs um fim abrupto a uma experiência que se revelou rica. Isaac Abravanel (1437-1508) e o seu filho Leão Hebreu (1465-1534) partiram de um conhecimento profundo da filosofia clássica e da escolástica cristã para afirmarem a sua conformidade com a Bíblia. Embora dando como adquirido o papel da razão, concluíram pela superioridade da revelação, efectuando no âmbito da fé judaica uma síntese com a filosofia similar à operada por São Tomás de Aquino no âmbito da fé cristã. Ambos os autores evidenciam influência de Platão e se opuseram à ideia aristotélica da eternidade do universo, a que preferiram o criacionismo bíblico.

Outro autor proveniente do judaísmo português – já então clandestino – foi Isaac Cardoso (1615-1680), médico e filósofo, que, em Veneza, publicou a sua Philosophia libera, obra eclética que afirma uma noção empirista de ciência a par do criacionismo e da defesa da liberdade intelectual. Estes autores mostraram-se, como fora já o caso de Samuel Usque (n. 1492), permeáveis a influências esotéricas e neoplatónicas.

Sob o signo da Contra-Reforma

A afirmação da Contra-Reforma em Portugal depois do Concílio de Trento (1545-1563) circunscreveu o tema filosófico do diálogo entre razão e revelação a autores católicos, alguns dos quais, como Álvaro Gomes logo no seu Comentário ou censuras (1543), pretenderam explicitamente refutar com recursos retóricos e lógicos as concepções teológicas saídas da Reforma protestante, nomeadamente as de Lutero. Dada a vigilância que a Inquisição passou a manter a partir desta época sobre toda a cultura intelectual, estas obras tenderam para a mera apologia do catolicismo.

Outros autores, como Sebastião Toscano (1515-1583), em Mística teologia (1568), ou o Padre António Vieira (1608-1697), nos seus Sermões, desenvolveram temáticas religiosas com recurso à filosofia moral. No caso de Vieira, a influência de Séneca foi notória nos seus escritos morais, o que denota um interesse continuado em Portugal, mesmo entre religiosos, pela obra deste autor peninsular da Antiguidade.